sexta-feira, 2 de agosto de 2013

ARCANO ONZE (MEMORABILIA DE 2013)

o bar pode ser uma sentença de morte
meu nome vai aparecer escrito nos cinzeiros marcando meu lugar ou minha presença passada
a vida próxima do nosso casamento vai demorar ou não vir
foi o mais absurdo dos dias: um sábado deslocado
a minha solidão… e a sua…
o fantasma do amor passado e os encontros nos ônibus
esses nossos corações estranhos
a morte põe ovos na ferida aberta; a vida abre as feridas
a lembrança inusitada das leituras
é mentira que os verdadeiros amores passem e era melhor que passassem
os amores que não passam
eu não esqueço e você não esquece e Freud está certo sobre isso
a memória… a música brega com seu nome e o Velho Testamento
há um romance do Bukowski carteiro no meu bolso
o que as cartas jamais dirão
a televisão mostra a repentina versão de um Brasil mal simulado
minhas mãos vazias
é preciso descobrir o que realmente importa
é preciso descobrir o que importa realmente
eu quero olhar pros seus olhos escuros e sinceros
eu quero entender as coisas que não entendo
eu quero quebrar a lógica da estrofe e iniciar um novo modo de oração
é preciso falar não como o escritor publicado ou o poeta que se finge sábio
é preciso falar como o Airton Uchoa Neto de 1993
antissocial e sem sorte com as mulheres e sem futuro certo
andando sozinho nas dez horas da noite da Francisco Sá sobre um tapete de jornais velhos
pensando uma canção em inglês que diz de todas as cidades do mundo
e querendo que a dele seja uma delas
é preciso saber os horizontes futuros dos livros e das criança planejadas em segredo
os noticiários são pouco claros sobre todos os tempos
espero que as cartas na mesa digam o futuro
antes que o telefone toque

[airton uchoa neto]
Carta Cinco.
Carta Três.
nunca tema
a dama sombria e sem sorriso
ela já venceu o que pra ela
jamais foi um jogo
também não se ocupe
de vitórias menores
nunca fomos jogadores
sempre fomos apenas

naipes descartáveis

[airton uchoa neto]
Carta Seis.
o poema é a fala verdadeira do poeta
o poeta é um sujeito com identidade civil
feito qualquer um
filosofias e teorias da literatura e do caralho
prometem tirar a responsabilidade social dessa loucura controlada
como deuses que prometem limpar pecados
você, que lê, e pode ser que nem escreva versos
saiba
coisas cotidianas que você disse sem notar equivaleram à mais bela poesia
sem querer você já disse e nem ligou
que o impossível é o possível que se esqueceu
analfabetos também são grandes poetas
os tolos também e sem querer nem perceber
mas o grande desespero permanece:

palavras são apenas os tijolos de um universo falso

[airton uchoa neto] 
Imagem para um poema sem título.
mas do outro lado da página
o verdadeiro outro lado da página
o de fora
não tem ninguém
é como não ter reflexo
é como não ter sombra
é não ter esperança de solidariedade
talvez nem sentir mais a falta dessas coisas todas
Omar  Khayyam, me dê um conselho:

“eles não voltam”, diz o final do verso

[airton uchoa neto]
Breve improviso.
tenho medido a vida
em termos suicidas de poemas por dia
como se medisse a vida em colheres de chá
colheres trêmulas e nervosas
é como se eu fosse morrer
e precisasse desesperadamente dizer algo
que eu não sei o que é

(impossível editor, censure esse poema, por favor)

[airton uchoa neto]
Carta Oito.
ORDENAÇÕES EMANUELINAS

Fortaleza, 10 de junho de 2013, 6h21
ainda não consegui dormir
talvez o sono em excesso seja imoral na corrida contra o tempo
o mundo construído lá fora
e construído dentro de todos os espaços e de todas as mentes
continua negando a vida com suas grandes merdades
(sim: com m, como vi no mais genial erro de tipografia)
e as grandes merdades do mundo estão cada vez mais lustrosas
cobertas com vernizes caros
falando ora com boa retórica
ora numa gritaria vulgar e vingativa de ressentidos sem expressão
bem banhadas bem perfumadas bem vestidas bem maquiadas
sob etiquetas padronizadas de eficiência
não tenha mais nojo dos seus dejetos
da merda sem metáfora
real
que os seus intestinos elaboram
às vezes com tanto trabalho
de todas as merdas essa é mais inofensiva
esqueça o que dizem os filósofos tristes
os desprezadores do corpo
confie nos seus olhos ouvidos pele nariz língua
confie nas suas veias que pulsam
nas suas mãos e nos seus pés e confie
sempre e sobretudo
no seu aparelho digestivo e excretor e nos seus genitais
femininos ou masculinos ou todos
tudo que é seu e é feito da sua carne não mente nunca
e sua verdade é honesta e não precisa da confirmação dos outros
pensadores & putas & pensadores & políticos & professores & pastores & padres
são todos profissionais da língua do p
e em segredo eles também peidam
confie em você, mortal vivo que a ampulheta ainda não venceu
arranque a palavra não da boca do mundo
o mundo que a televisão tornou real
e arranque a palavra não dos livros moralistas
será preciso tornar o não uma palavra nossa
e revestir a palavra com o ódio verdadeiro da voz
punhos contra muros verdadeiros
e revestir a palavra com o suor de verdade de quem conhece o sol
será preciso ver os livros incômodos
não como noites sombrias e sem esperança
mas como dias que começam

plenos do mais radiante desconhecido

[airton uchoa neto] 
Taenia.
o cartomante ateu
cansado do destino e de destinos
deseja
que as coisas não se sucedam mais em narrativas
todos morrem em prosa
ou dormem
predominantemente dormem
ele deseja
não mais essa morte presente de cada segundo perdido
essa ampulheta movida a cinzas de cigarro
antes o tempo estático e intenso da poesia
onde tudo está acontecendo em vários agoras que se convivem
mesmo que ninguém veja
ou em pedras imóveis da zona da mata de Pernambuco
que não se importam com ser vistas
mas foi necessário ler mais uma vez esse livro movediço
(na versão de Arthur Edward Waite, presente de mme. Macambira)
e no embaralhar caiu a carta que diz Mago
o cartomante ateu tomou meio copo de cerveja na noite de Fortaleza
e baixou a cabeça

na outra mesa duas moças se beijavam

[airton uchoa neto] 
A partir do poema de Emanuel Régis.
temos que nos conformar
sim:
algumas pessoas fizeram o que jamais faremos
por exemplo
Tolstoi:
nossos romances podem ser até mais extensos do que “Guerra e paz”
mas jamais serão “Guerra e paz”
e nunca escreveremos o grande poema que Tolstoi escreveu na neve
com os pés
antes de morrer
você ficou triste e se achando impotente?

baby, nos restou fazer novamente o que nunca foi feito antes

[airton uchoa neto]
Carta Três do Primeiro Tarot.
por que em busca da verdade você precisa ir
tão
fundo
e cada vez
mais fundo?
sua pá já deve ter jogado a verdade acima dos seus ombros faz tempo
e você não acreditou
porque ainda não estava
fundo
o bastante
de tão fundo que está
já não enxerga porque não há luz
e se visse a luz ela queimaria seus olhos
e ainda assim cava
ainda
mais
fundo
chegará o momento em que de tão profundamente entranhado na terra
já não valerá a pena voltar à superfície
e teremos que devolver sobre os seus ombros toda terra removida em vão
mas não duvido que assim mesmo
soterrado
você continue cavando
mais
e
mais

fundo

[airton uchoa neto]
Carta Nove.
Toda pertinácia seria o esforço por dar o volume máximo
À única chance de grito de alerta.
Sabe?
Gosto de poemas sem títulos:
Começam de repente, sem se apresentar, sem pedir licença,
Como o grito de alguém na rua que acorda todo mundo dentro da casa
Ou os passos furtivos de alguém que chegou tarde ou não devia estar ali
E fez latir os cães de ponta a ponta por trás das grades fechadas.
Antes gostava da ideia de cada livro ter apenas um único exemplar de uma única edição
E o mesmo para discos, danças, peças de teatro.
Tudo deveria ser único como os quadros e as esculturas que não tiveram cópia,
Mas, naturalmente, nada deveria trazer a sua assinatura.
Tudo deveria ser único
Apenas
Por ser único.

Assim, veríamos, em tudo, a confissão desesperada de cada segundo que passa.

[airton uchoa neto]
UZI radiografada.
transcendental é um carnívoro cheio de vaidade e de preguiça
o jaguar satisfeito com o focinho sabendo a sangue
“o dicionário é o único lugar onde o trabalho vem antes do sucesso”:
a sabedoria edificante e chata que as pessoas repetem
em vez de se vingar dela
do mesmo jeito que é preciso se vingar de coisas como o dinheiro
ædificare é ter as juntas calcificadas e sentir nascer na carne uma colônia de corais

ædificare é a morte quebradiça e anêmica de todas as coisas 

[airton uchoa neto]